O Lions Clube de Palmela realizou ontem, na Biblioteca Municipal, um encontro muito interessante e a minha participação teve como título «Os Estereótipos de Género na Escola».
Comecei por clarificar os conceitos de estereótipo e de género, sobretudo porque ainda é muito vulgar pensar-se que todos os estereótipos são negativos e, sobretudo, que os de género vitimizam apenas a mulher, o que não é verdade (pensemos, por exemplo, na falta de formação dos juízes que ainda atribuem mais de 90% da guarda parental às mães, apesar da clareza da lei sobre guarda conjunta e igualdade na responsabilidade parental!).
Após deixar bem claro que género ultrapassa muito a questão biológica, sendo uma construção cultural e social, fiz uma breve síntese da situação da mulher, desde a Antiguidade até hoje, dando ênfase aos avanços do II pós-guerra. O meu enfoque situou-se na Plataforma de Pequim e nas áreas identificadas, o que acelerou muito a luta pela igualdade. Abordei ainda o conceito de empoderamento, nas duas abordagens mais correntes.
Numa segunda parte, após a comparação entre a situação da mulher portuguesa da Primeira República e a do Estado Novo, analisei a escola no Portugal de hoje, chamando a atenção para o actual conceito de currículo, destacando a importância do currículo oculto e dando vários exemplos concretos. Defendi também o currículo da empatia, que permite desafiar preconceitos, implementar experiências desafiadoras e promover a mudança.
Chamei a atenção para os excelentes trabalhos da CIG (Comissão para a Igualdade de Género) e para o desprezo a que as escolas normalmente votam as suas excelentes sugestões nos seus Guiões adaptados a cada ciclo de ensino.
Fiz a análise de alguns manuais atuais que ainda apresentam marcas de desigualdade e mesmo situações caricatas como
exercícios de matemática em que todos os alunos de uma turma são rapazes … como
se a coeducação não existisse há décadas ou como se se separasse a educação
para os valores da aprendizagem de cada disciplina!...
Na parte final, apresentei as minhas conclusões:
Não podemos dizer que estamos muito atrasados em relação à média dos outros países europeus.
A nossa lei de Bases do Sistema Educativo consigna a coeducação e a igualdade de oportunidades entre os sexos.
O currículo formal já mudou.
Já não temos um sistema genderizado.
Mas, na prática, ainda persistem estereótipos de género.
A docência está entregue a mulheres, mas as lideranças são masculinas!
Os próprios nomes das escolas são essencialmente masculinos!
Os manuais ainda apresentam alguma invisibilidade e assimetria das mulheres.
Iniciativas soltas em educação não surtem efeitos significativos.
É essencial trabalhar em rede e no mesmo sentido.
A escola tem que ter coragem de remar contar a maré!
Há necessidade de intervir precocemente na educação das crianças de modo a contribuir de forma positiva para a construção da identidade de género.
É urgente que se investa na Educação Familiar/Parental.
Outro aspeto essencial é a formação de professores, tanto inicial, como contínua.
É preciso integrar a dimensão de género na sua formação.
Fornecer-lhes uma base teórica sólida.
Falta formação de professores no sentido de criar sensibilidade para novas práticas e para o uso dos materiais pedagógicos já existentes.
Porque…
A mudança legislada não resulta por si só…
Mudar mentalidades é um processo complexo e moroso…
EIS O CONTEÚDO DE ALGUNS DOS PRINCIPAIS SLIDES QUE USEI
¢Apesar do conceito de estereótipo
ser relativamente recente, a palavra vem do grego e
resulta da soma de stereos
e typos, o que se traduz por «impressão
sólida».
¢Estereótipos são pressupostos,
generalizações, conjuntos bem organizados de crenças.
¢O seu papel nem sempre é negativo,
pois os estereótipos podem assumir uma função adaptativa e permitir organizar a
complexidade do social.
¢Podem ser apenas um ponto de
partida.
¢ E nem todos os estereótipos são
negativos:
¢Os africanos têm jeito para a
música.
¢¢Os
estudos tradicionais das diferenças entre os sexos haviam tentado provar que as
características que normalmente se atribuem aos dois sexos derivam de
diferenças biológicas.
¢Nos anos
70 do século XX, trabalhos pioneiros como os de Margaret
Mead,
Simone de Beauvoir e Ann Oakley
permitiram clarificar que o género
difere do sexo,
porque ultrapassa a questão biológica.
¢Como é evidente, Homem e Mulher são
biologicamente diferentes,
mas isso não os torna desiguais.
¢ A feminilidade
e a masculinidade
são construções que diferem no espaço e no tempo, em função das especificidades
culturais.
¢Trata-se de
prescrições normativas e proibitivas de ser e de se comportar.
¢O género atravessa todas as
instâncias do social: família, trabalho, relações interpessoais…
¢A estereotipia de género
desenvolveu-se de um modo dicotómico, excluindo-se reciprocamente, à semelhança
do que ocorre com as diferenças sexuais.
¢Héritier
(2002)
salienta que o cérebro das mulheres apresenta as mesmas características do
cérebro dos homens. Ocupa o mesmo lugar, apresenta as mesmas formas, as mesmas
circunvoluções e desempenha as mesmas funções.
¢Mas a inculcação
de valores foi eficaz e durou milénios, portanto, é utópico achar que a
igualdade plena vai ser atingida
para já.
¢Trata-se de
uma meta,
talvez
ainda idílica
¢Lutar contra os estereótipos de género é
uma necessidade urgente nas sociedades atuais.
¢Não se trata sequer de uma bandeira
ideológica.
¢Ultrapassa, e muito, o feminismo.
É
uma questão de direitos humanos e de desenvolvimento económico.
¢Eva tentou Adão…
¢Na Antiguidade,
a mulher aparece nos mitos como a causadora do mal…Mito de Pandora: é a mulher
que levanta a tampa e a maldade espalha-se pelo mundo.
¢Aristóteles: a mulher é um corpo
poroso e imperfeito, um homem que não chegou a ser acabado.
¢Em Roma nem tinha
nome
pessoal. Adaptava-se o nome do pai…não tem identidade, nem existência. O pai
pode forçá-la
ao
divórcio, mas por conveniência económica, pode vendê-la como
escrava,
etc..
¢Havia até um tutor legal, por se
considerar que a mulher não é suficientemente inteligente para agir no seu
próprio interesse.
¢A palavra noiva vem de véu=a que
põe o véu, para o usar.
¢Matrimónio, de matrona, a que casa
para ser mater
família=mãe. A mesmo étimo de maternidade.
¢Ovídeo, Arte de Amar (Livros I, II,
III – século I): define a estética feminina e a masculina - técnicas de
sedução masculina;
conselhos às
mulheres sobre penteados, roupas, cosmética.
¢Na Idade
Média…
provérbios como este «Ao bom e ao mau cavalo, a espora; à boa e à má mulher, um
senhor e, de vez em quando, um bastão».
¢S. Tomás de Aquino – século XIII -
«A mulher foi criada para ajudar o homem apenas no ato da procriação, porque em
todas as outras tarefas o homem encontrará bem melhor apoio fora dela».
¢Mesmo quando se avança algo na
dignificação da mulher, é nestes termos: «Se as mulheres não fossem boas e os
seus conselhos não fossem considerados inúteis, Deus não as teria criado como
ajuda do homem, mas sobretudo, como causa do mal» - Chaucer, filósofo inglês do
século XIV.
¢No Renascimento,
a beleza deixa de ser temida, como fora na Idade Média.
¢O nu feminino é assumido…até surgem
as Virgens do Leite…
¢Mas a beleza exterior era sinal de
uma bondade interior…
¢Foi precisamente nesta época que se
estruturou a feminilidade: a delicadeza e a ternura em contraste com a potente
virilidade masculina:
¢Castiglioni,
Cortesão - «Uma mulher não deve, de forma alguma, parecer-se com o homem, na
sua conduta, nas suas maneiras, palavras, gestos ou atitudes. Assim como é
próprio do homem apresentar um certo ar másculo, de robustez e energia, também
é desejável que a mulher mostre uma ternura suave e delicada, dando um toque de
doçura feminina a todos os seus movimentos.»
¢O androcentrismo
na arte reflete
o imaginário das sociedades ocidentais: no Barroco,
as Vénus que se olham ao espelho…raramente há homens.
¢Até no tempo do Iluminismo,
mesmo os mais radicais como Rousseau:
¢«As mulheres devem agradar aos
homens, ser-lhes úteis, fazer-se amar e honrar por eles; criá-los quando
jovens, cuidar deles, quando adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a
vida agradável e doce, tais são os deveres das mulheres em todas as épocas e o
que se deve ensinar-lhes desde a infância» (Emílio, livro V).
¢Em 1888, Renoir
dizia
que «qualquer mulher artista é simplesmente ridícula»
¢Já no século XX, na Bauhaus, as
mulheres lecionavam como
auxiliares dos respetivos
maridos (mascarou-se
com o conceito de casal produtivo) e as
que se salientaram foram ostracizadas.
¢Os cursos aprovados não passavam da
tecelagem ou, no máximo, design de interiores...Havia mesmo o departamento
feminino.
¢Assumia-se que eles eram seres
culturais e
elas, seres
naturais…
¢Gropius – O
triângulo vermelho como símbolo do masculino/génio e o quadrado azul, matéria,
feminilidade…
¢O próprio Surrealismo foi androcentrico –
André Breton
definiu o Surrealismo como «substantivo masculino» e a mulher aparece como objeto do
desejo do homem.
¢Trotula,
século XI, textos de medicina tão bons que os historiadores se recusaram a
acreditar que eram de uma mulher!
¢Públia
Hortênsia de Castro,
século XVI, teve que se disfarçar de homem para frequentar a Universidade de
Coimbra!
¢Lady
Ann Conway,
século XVII, escreveu Princípios da Antiga e Moderna
Filosofia,
mas após a sua morte o nome foi deliberadamente removido da capa e passou a ser
entendido como tendo sido escrito por um homem!
¢Catherine
Greene,
Século
XVIII, inventou, construiu e melhorou a máquina descaroçadora de algodão, que
tem sido atribuída a Whitney!
¢Miranda
Barry, século XIX, teve que se disfarçar
de homem para poder estudar medicina em Edimburgo e só se descobriu na hora da
sua morte!
¢Rosalind
Franklin,
já em 1958, investigações sobre a estrutura do ADN permitiram que 3 cientistas
continuassem e ganhassem o Nobel, mas o seu nome foi omitido!
¢Sendo o género uma construção, é
possível implementar práticas educativas esclarecidas e estratégias promotoras
da igualdade de género.
¢O problema é que a educação é um
fenómeno complexo.
¢Envolve múltiplos intervenientes.
¢Para
educar uma criança é preciso toda a alde¢Implica a socialização primária,
que é essencialmente da responsabilidade da família.
¢Na própria gravidez já começa a
discriminação/o enxoval, os pontapés vigorosos ou não…
¢Os miúdos chegam à escola já com
preconceitos.
¢Ouvem músicas como esta de Gabriel
o Pensador:
¢ Existem mulheres que são uma beleza
/ mas quando abrem a boca, hum, que
tristeza/
(...) bundinha empinada pra mostrar que é bonita / e a cabeça parafinada pra
ficar igual paquita
/ Loira burra, loira burra, loira
burra, loira burra...
¢Na própria escola…bibes, fardas,
contos, canções, jogos,
desporto, materiais pedagógicos
imbuídos de estereótipos de género.
¢Afinal o que é o Currículo?¢ Existem vários Currículos…ou
várias camadas…currículo em bolbo
¢Tudo é currículo
¢Até as mensagens afixadas nos
corredores, nos pátios, nas salas veiculam estereótipos
¢Currículo Formal
e Currículo Real
¢Estamos conscientes do poder do
Currículo Oculto?
¢Tudo o que se aprende na escola…por
gestos, atitudes, comportamentos…muitas vezes contraditórios com o discurso…
¢Há quem diga que tudo é linguagem,
que ensinar qualquer disciplina é um ato linguístico
¢Mesmo o Currículo Formal pode ser
lido de modos diversos
¢Prescritivo, rígido, centrado nos
conteúdos, dar matéria, avaliar/classificar
¢Desenvolvimento Curricular,
Currículo em ação,
interativo,
dinâmico, em construção, competências, ensinar/aprender
¢Como se trabalha? Há balcanização
ou trabalho colaborativo? Estamos conscientes da Colegialidade artificial?
¢Há debate e reflexão?
¢A CIG
(Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género) tem publicado uma série de
estudos e fornece às escolas Guiões
adaptados a cada ciclo de escolaridade, com sugestões de tarefas e materiais
pedagógicos excelentes
¢Usa-se os materiais da CIG?
¢A formação inicial dos professores
incorpora os protocolos internacionais?
¢Queremos mesmo os pais na escola?
¢Os pais vão à escola pelos motivos corretos?
¢A nossa escola promove a Educação
Parental e Familiar?
¢Participação
do pai e da mãe nas diferentes atividades
diárias dos filhos
¢Promoção
da auto confiança das raparigas e rapazes
¢Cooperação
entre rapazes e raparigas no desempenho de diversas atividades
¢Oferta
de materiais lúdicos e de outro tipo não diferenciado por sexos
¢Encorajamento
das raparigas para a exploração de profissões mais típicas no sexo masculino e
o inverso
¢Elogiar
as raparigas pela sua audácia a enfrentar desafios e a resolver problemas
e elogiar os
rapazes pelas suas boas maneiras e pela sua capacidade de organização e de
arrumação
¢Valorização
da opinião dos rapazes e das raparigas nas decisões familiares
¢Participação
das
raparigas e dos rapazes em modalidades desportivas variadas
¢Os materiais pedagógicos são
agentes poderosos no processo de socialização e formação da identidade,
sobretudo os manuais.
¢Portugal tem correspondido aos
compromissos internacionais no domínio da igualdade de género, através dos PNI
(Planos Nacionais para a Igualdade).
¢Objetivo:
sensibilizar editoras e escolas para a certificação de manuais sem
representações sexistas.
¢No entanto, um olhar clínico ainda
permite encontrar algumas marcas.
¢Daí a necessidade de formação,
debate, reflexão e vigilância constante.
¢Mesmo havendo movimentos que
defendem a escola neutra, sem transmissão de valores…nunca acontece, pois há interação,
diálogo…mesmo que os temas fossem asséticos…
¢«A eliminação dos estereótipos de
género dos manuais escolares e outros materiais pedagógicos só pode ocorrer
quando se verificar que a homens e mulheres, ao sexo feminino e ao sexo
masculino, é atribuída e associada a mesma diversidade física e psicológica que
é inerente ao ser humano, bem como a mesma diversidade de atividades
e esferas de atuação,
de funções e níveis de participação e ação que marcam a vida em sociedade». Maria Teresa Alvarez Nunes, 2009).
¢Distribuem-se as referências a
ambos os sexos de forma equilibrada?
¢No texto? Títulos e subtítulos? Na
imagem? As legendas?
¢Ambos aparecem de forma ativa
e passiva?
¢Ambos associados a verbos como:
fazer, atuar,
decidir, exprimir emoções, reagir, interagir, revelar capacidades cognitivas?
¢Identificam-se ambos com situações
de:
¢Domínio/dependência
¢Passividade/atividade
¢Transgressão/norma
¢Liderança/seguidismo.
Resultados de uma análise de Manuais atuais do 1º ciclo:
¢Nas imagens, a família sempre a
tradicional.
¢Mulheres fazem bolos, dão banho ao
bebé, vão comprar comida…
¢A mãe da Teresa foi comprar eletrodomésticos
e o sr.
Diogo foi comprar um televisor…mas as imagens referentes à mãe da Teresa são:
secador, varinha mágica, aspirador, máquina de sumos, etc.
¢Já aparecem mães trabalhadoras,
mas…
¢Profissões como mineiro e pescador
sempre no masculino…
¢Nas brincadeiras, aparece uma
rapariga à baliza, mas excecionalmente.
¢Até o menino que está em casa e
observa quantos carros passam na rua!
¢A menina conta pacotes de leite da
despensa…
¢O Diogo e a Andreia registam o
estado do tempo…
¢O Tomás partiu um vidro e a
professora vai ter que pedir a um vidraceiro…(porque não, a uma empresa
vidraceira?!)…
¢A menina ajuda a mãe a fazer sumos
e leva a bandeja…
¢Faziam pratos femininos, com flores.
¢Até na festa de anos quem parte o
bolo é a mãe.
¢As meninas vão às compras sempre
com as mulheres da família…
¢Nenhum professor (homem) nas
dezenas de imagens!